DE CUJO NOME
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
ACREDITAR
Vi esta tarde um conhecido meu, um desses
sujeitos engajados na política. Se não me engano é um humilde
filiado ao Partido. Vinha comendo amendoins, de cabeça baixa, e
trazia colado ao peito o adesivo de um candidato qualquer. Ele ainda
acredita, pensei. Votou no Lula, nas duas eleições. Votou na Dilma.
Consta que no começo era grande admirador do José Dirceu e padeceu
muitas noites de insônia quando o viu envolvido no mensalão. O sol
levanta-se e se põe, passam-se os dias, os meses e os anos – e o
homem continua acreditando. Vinha comendo amendoins, pacificamente,
com seu mais novo candidato colado ao peito. Vi-o limpar a mão na
calça, sem a mais remota dúvida. Ele ainda acredita, pensei,
estupefato.
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
MELHOR NÃO OLHAR
Tenho um carinho especial por cachorros. Vira-latas, de preferência.
Hoje vi um destes tentando atravessar a avenida movimentada (vemos
tantos todos os dias que quase não os percebemos: são como postes,
como carros, como muros). Passei por ele, dei uma olhada pelo
retrovisor e segui adiante, irremediavelmente cativado por sua
expressão atenta e assustada. Notei seu rabo meio encolhido, suas
orelhas levantadas, suas patas prontas para correr. Envolvia-o o
zunzum dos carros. Tentei me tranquilizar pensando que os vira-latas
já se acostumaram a esta circunstância moderna que é atravessar o
sinal: já sabem a hora de correr, já sabem para onde olhar,
distinguem o sinal verde do amarelo. Engano, claro. Por mais
acostumados que estejam, são tão falíveis como nós, humanos, que
nunca dominamos completamente uma situação. Pois bem. Passei por
ele e dei uma olhada pelo retrovisor. Vi que estava indeciso. E
preferi não olhar mais.
sexta-feira, 17 de agosto de 2012
TÃO SUJA
Nem bem começa a campanha eleitoral e vejo
dezenas de fotos de candidatos, e dezenas de números e de slogans de
candidatos. No deslocamento entre a minha casa e o meu
trabalho vejo candidatos nos carros e nos outdoors: candidatos
sorridentes, candidatos carrancudos,
candidatos sozinhos, candidatos acompanhados. Candidatos, candidatos,
candidatos. E como são grosseiros e
indecentes os candidatos, e como suas expressões são torpes,
e como seus olhos, e seus rostos escanhoados, e seus cavanhaques e
barbas, e seus narizes, e seus sorrisos são obscenos!
E como são feios os candidatos! Como são feios todos eles! E como
são vazios seus slogans! E como são risíveis e indignos e
mentirosos seus slogans! E como falam com desfaçatez, com cinismo e
com desvergonha em progresso, em honestidade, em compromisso, em
educação, em segurança, em saúde!... Arre, como está suja a
cidade! Mais suja que o normal. Nossa cidade já de si tão suja, tão
suja, tão suja.
quarta-feira, 15 de agosto de 2012
O QUARTINHO DA CAVEIRA
Nem
lembro exatamente por que nos ameaçavam, que malfeitorias cometíamos
ou podíamos cometer. Creio que nos ameaçavam porque estudávamos
pouco, ou porque brigávamos, ou porque demorávamos demais no
recreio. (A nossa vida era uma vida de medos, de ameaças pendentes
de execução.) Sei, porém, que para alguns de nós – os mais
inocentes, pelo menos –, as ameças surtiam efeito: não brigávamos
nem na sala nem no recreio (mas brigávamos na porta do colégio),
respeitávamos todos os horários e sobretudo estudávamos como
loucos: honrávamos, enfim, um nebuloso código escolar, cheio de
regras invisíveis. Para os que não o fizessem, ei-lo, o pior dos
castigos (havia outros, menos terríficos mas mais dolorosos, que às
vezes ainda assim preferíamos: a bofetada pura e simples ou a temida
palmatória), ei-lo, como eu dizia, o pior dos castigos: o quartinho
da caveira. A bem da verdade, não era exatamente um quartinho, mas
sua representação: uma porta, pintada de verde, que ninguém, pelo
que me consta, nunca tinha visto aberta (só a tinham visto aberta os
infelizes engolidos por aquela boca escura e sem dentes, isto é, os
infelizes que tinham sido jogados no quartinho, e que, dizia-se,
saíam contando horrores da experiência). E nós, do pátio interno,
nós a víamos, fechada e ameaçadora; e a víamos também quando
passávamos por ela, em direção às nossas salas; e a víamos, a
depender da posição, através das janelas, enquanto assistíamos às
aulas. No quartinho, claro, trancavam os meninos desobedientes, e
dele diziam que era estreito e escuro. E que tinha uma caveira,
evidentemente. Mas por que uma caveira? Que sádico educador ideara
tão cruel instrumento de castigo? Ninguém sabia. Hoje, ao recordar
o período, acho provável que um dia alguém tenha visto a porta
entreaberta e, dentro do quartinho, pendurado como um paletó velho,
um esqueleto inofensivo, desses de plástico, desses que se usam em
aulas de anatomia. Talvez esse alguém, algum colega mais
imaginativo, tenha espalhado a notícia da caveira, que virou lenda e
atravessou duas ou três gerações. O fato é que deixei o colégio
sem saber se realmente havia uma caveira atrás da porta verde. Só
depois que cresci (não sei quanto tempo depois) foi que me disseram
que o quartinho da caveira nunca tinha abrigado caveira nenhuma (a
não ser, quem sabe, a eventual caveira de plástico, solitária e
desvalida) e sim os instrumentos da banda da escola, por sinal uma
das melhores da cidade. Surdos, pratos, triângulos, bumbos – isso
era tudo o que havia dentro do quartinho. Mas por que ninguém tratou
de pôr cobro à ameaça, ao medo constante? Não bastavam os
safanões e a palmatória? Por que nenhum dos meus colegas – vários
deles tocavam na banda e sem dúvida tinham visto os instrumentos lá
dentro do quarto – nunca disse a verdade? Talvez agora, à
distância, eu exagere o efeito da caveira: não creio que ela tenha
chegado a me tirar o sono. Mas ela sem dúvida nos inquietava (isto
é, sua mera possibilidade inquietava-nos) quando do pátio, ou
através das janelas das nossas salas, mirávamos a medo aquela boca
que a qualquer momento podia abrir-se e nos tragar.
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
UMA FAMÍLIA
Hora
do almoço, num restaurante. Os dois moleques chegam contrariados,
talvez porque os pais não lhes satisfizeram os gostos. O galeguinho,
que está de costas para mim, parece ser bem comportado: vejo-o mexer
quietamente na orelha direita, como se estivesse distraído. Já o
moreninho, que vejo de frente, faz caras e bocas de malandro, e
vai-não-vem debruça-se sobre a mesa para falar com o irmão em tom
conspiratório. O pai, alto e barrigudo, moreno, barba de três dias,
calça social e chinelos, foi fazer os pratos com a mãe; antes
mandou os moleques guardarem o lugar: diante deles, sobre a mesa, a
bolsa da mãe, uma bolsa grande e mole, parece um animal morto. Os
pais voltam com os pratos e todos começam a comer. A mãe é morena,
tem os olhos grandes e expressivos, o nariz afilado; veste calça
jeans e camiseta (e logo vejo que não é mãe: não usa aliança em
nenhuma das mãos e é jovem e bonita, jovem demais para ser mãe dos
moleques) e gosta de tatuagens: tem estrelas no ombro esquerdo e nos
pés (por sob a mesa vejo seus belos pés calçados em escarpins). O
pai é autoritário: resmunga, diz aos meninos o que devem e o que
não devem fazer (ouvi-o dizer para o galeguinho, rosnando: “Tire
os pés da cadeira!) e mantém um ar distante (os filhos, penso, são
para ele duas coisas, duas sacolas que ele colocou nas cadeiras
enquanto come). A madrasta (feio nome para uma moça tão bonita),
por sua vez, parece amiga dos dois: conversa e sorri. Que fazem
aqui?, me pergunto. De onde vêm? Que foi feito da mãe dos moleques?
Será que os moleques gostam do pai? Será que respeitam a madrasta?
Continuo observando-os, entre uma garfada e outra. A madrasta parece
satisfeita: vejo-a piscar para o pai, não consigo imaginar por quê.
Pouso os olhos nele: fixo-me em suas sandálias gastas, em seus
calcanhares sujos; examino sua cara severa, sua barba negra, seus
olhos duros... Que motivos ela tem para estar satisfeita? O moreninho
come com preguiça, a cabeça apoiada na mão direita; o galeguinho
pensa em colocar os pés na cadeira e súbito recorda a severa
recomendação do pai. Termino de comer. Preciso voltar ao trabalho.
Levanto-me e me afasto devagar. Deixo-os para trás. Provavelmente
não tornarei a vê-los. A tarde é ensolarada, uma agradável tarde
de agosto. Há uma leve melancolia nessa tarde clara. Provavelmente
não tornarei a vê-los.
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
SANTÍSSIMA PACIÊNCIA
Como hoje não é dia de nada (pelo menos de
acordo com o site que acabei de consultar; amanhã é o dia do
tintureiro; ontem foi o dia do selo e da amamentação), por que não
instituir o dia 2 de agosto como o dia da paciência? Eu
gostaria de ver na internet notícias (reportagens, artigos, sei lá)
com o seguinte teor: “Hoje é o dia da paciência. Veja o que você
pode fazer para ter ainda mais,” ou então “Cinco especialistas
dão dicas de como aperfeiçoar a paciência”. Porque todo dia (ou
quase) é dia de alguma coisa. A coisa chegou a tal ponto de
despropósito que não me espantaria que houvesse o dia do pneu, o
dia do cartaz, o dia do vaso sanitário, o dia do alfinete, o dia do
virabrequim (as pessoas não sabem como o virabrequim é
importante!), sem falar nos dias mais, digamos, abstratos: o dia do
sentimento (só valem os sentimentos bons, é claro), o dia do
suspiro (de alívio, bem entendido), o dia da contemplação (mas não
no trabalho), o dia do sonho (“Especialistas ensinam como sonhar”),
o dia do desapego (“Veja aqui como fazer para desapegar-se com
eficiência”). O absurdo de alguns desses dias (pelo menos para
mim, que sou ranzinza) chega a ser constrangedor: no dia do homem,
que descobri existir este ano (como se fosse necessário um dia do
homem, coitadinho: se a mulher tem um, por que o homem não pode
ter?), no dia do homem, eu dizia, vi muito homem se cumprimentando e,
o que é pior, vi muita mulher cumprimentando homem. E pior ainda:
vi, não sem estupor, algumas pessoas virem me cumprimentar. Menos
mal que foram poucas, pois nunca achei que merecesse ser
cumprimentado por algo tão natural, tão genético, tão biológico
(e, como tal, não escolhido) como o meu gênero (o mesmo raciocínio
vale, aliás, para as mulheres, me perdoem as que fazem questão). A
coisa é de um enorme absurdo, como já disse, mas também de uma
hipocrisia deslavada: existe o dia da mulher e o dia do homem. Mas e
o dia do homossexual? E o do transsexual? Bom, vi na internet que é
o dia 28 de junho (parece que todos os grupos reunidos sob a sigla
LGBT, se não me engano, têm direito a apenas um dia, o dia do
Orgulho Gay). Ocorre, porém, que a data ainda não foi oficializada.
Pelo menos não a vi em nenhuma das listas que consultei. Será que
algum movimento subterrâneo impede a oficialização? Por falar
nisso, quem oficializa as datas? Quais são as verdadeiramente
oficiais e as meramente simbólicas? Cada grupo cria a sua e se
encarrega de divulgá-la? Em sendo assim, eu e eu mesmo instituo hoje
a minha: a partir de agora, oficialmente, o dia 2 de agosto é o dia
da paciência. Pois é preciso ter muita, santíssima paciência,
para aguentar estas bobagens.
quinta-feira, 26 de julho de 2012
DONA GRACINHA
Ela parece cansada. Chega com os cabelos em
desalinho. Vejo olheiras sob seus olhos. Está mais magra, sem
dúvida. Que será que ela tem?, me pergunto. Será o marido, que é
gordo e ciumento? É o marido, decido. Tem infernizado sua vida, o
mau caráter. Ou será a filha? Pode ser. A filha, muito novinha
ainda, tem andado doente, a bichinha. Não é a filha, concluo. Ela
me cumprimenta, sorridente como sempre (“Bom dia, doutor”, e
nunca diz o meu nome). Senta-se à mesa, levanta-se, vai até o
frigobar, para diante dele e medita. Há uma garrafa de café sobre o
frigobar. “Está quentinho, o café”, digo. E completo: “A dona
Ivanilda trouxe agorinha mesmo”. Ela se volta para mim, o dedo
indicador no queixo. Sorri e diz: “Pois é, estou decidindo”. E
eu volto a trabalhar, constrangido porque agora ela sabe que eu a
estou observando. Sinto-me culpado por forçá-la a tomar uma
decisão. Ela finalmente se decide e volta à mesa sem o café. Puxa
um processo, abre gavetas, liga o computador. Ei-la, estática,
diante da tela, os cotovelos na mesa, o queixo apoiado nas mãos.
Está mais magra, não há dúvida. Mas continua bela. É o marido,
repito. É o miserável do marido que a inferniza o dia inteiro. A
coitadinha nunca deu motivo para ele ter ciúmes. Ela suspira e
começa a trabalhar. Ou melhor, a fingir que trabalha. Não a culpo.
O marido, o maldito marido, barrigudo e preguiçoso (o preguiçoso é
por minha conta, reconheço), não a deixa em paz. Agora mesmo, à
distância, monopoliza os pensamentos dela. A sombra do maldito
marido gordo a persegue. “Dona Gracinha”, eu digo, “a senhora
está com algum problema?” Ela tira os olhos do computador e se
volta para mim, um sorriso luminoso no rosto. “Não, doutor, de
jeito nenhum”. É discreta, mas seu sorriso não me engana. Eu
saberia valorizar esse sorriso, penso, enquanto a observo distraída
diante da tela do computador.
FODA
Tem a história da primeira vez em que ouvi a
palavra foda. Estávamos no quintal da minha casa. Era de manhã. (Ou
seria no final da tarde? Lembro de tantas manhãs luminosas na minha
infância... acabo pensando que tudo o que me aconteceu naquela época
aconteceu de manhã. Mas agora acho que era no final da tarde. Tenho
certeza, aliás, de que era no final da tarde.) Estávamos, pois, eu
e um amigo mais velho, consertando minha bicicleta no quintal da
minha casa. Mais um parêntese: não sei se é certo dizer que ele
era meu amigo. Amigo é palavra delicada, de aplicação restrita,
que não sei se se encaixa bem nesse caso. É sabido que as amizades
infantis se travam normalmente entre pessoas da mesma idade. E ele
era, como eu disse, mais velho do que eu. Eu tinha, sei lá, sete ou
oito anos, e ele tinha uns quinze. Não era meu amigo, portanto: seu
universo era muito diferente do meu; suas aspirações, suas
experiências, seus gostos eram muito diferentes dos meus. Nem sei
exatamente por que nossos caminhos se cruzaram; talvez porque
morássemos perto um do outro. Mas não era mesmo meu amigo, pois
logo nossas vidas seguiram caminhos diferentes. Mas volto à
história: estávamos consertando minha bicicleta no quintal da minha
casa e era um final de tarde. Lembro bem da bicicleta virada de
ponta-cabeça, o guidão e o selim apoiados no chão de cimento;
lembro das rodas livres, girantes. Não sei, não lembro exatamente o
que tentávamos consertar, só sei que passamos boa parte da tarde
empenhados em nosso mister... até que, depois de algumas (ou muitas)
tentativas, finalmente conseguimos. E então, entusiasmado, ele disse
uma frase incrível: “Ficou foda!” Meus olhos devem ter brilhado.
Talvez naquela época, mesmo sem saber, eu já gostasse de palavras.
De modo que meus olhos devem ter brilhado. “Foda?”, acho que
perguntei. E ele repetiu: “É, ficou foda!” E eu entendi que
tinha ficado muito bom, bacana, legal, joia. Tenho absoluta certeza
de que não perguntei sobre outros possíveis significados;
contentei-me com esse primeiro, que tinha entendido suficientemente
bem. A coisa seguinte de que me lembro é de nos despedirmos à porta
da minha casa e de eu ter pedido para ele repetir a palavra, que na
minha voz – lástima – não parecia tão engraçada, nem tão
sonora. E ele repetiu, satisfeito (e malicioso, pois tinha
compreendido que eu não sabia exatamente o que significava foda): “É
foda!” Foda. Que palavra bonita!, eu repetia, fascinado. A história
poderia acabar aqui. Afinal, foi a história da primeira vez em que
ouvi a palavra foda. Mas ela tem um prolongamento. À noite, no
jantar, a propósito não sei do quê, comentei, entusiasmado: “É
foda!”, com exclamação e tudo. Imediatamente atraí todos os
olhares da família. Naquela mesma noite (ainda na mesa, na verdade)
meus pais me explicaram que a palavra não era bonita, que na verdade
era feia, muito feia. Talvez tenha sido essa a primeira ocasião
(pelo menos é a primeira de que tenho perfeita lembrança) em que eu
descobri que nem sempre as palavras valem pelo que soam, e que nem
todas são tão inocentes quanto parecem. Bem. Ainda hoje ninguém me
tira da cabeça que “foda” é uma palavra eufônica, sonora,
simpática, divertida. Se me constranjo às vezes quando a ouço (há
pessoas que a pronunciam em ambientes, digamos, pouco propícios) é
só porque há décadas a sociedade vem me dizendo que é feia, feia,
feia. Fica aqui a minha defesa da palavra (na circunstância certa, e
com seu caráter de alegria, de diversão). Fica aqui também, por
sinal, a minha defesa do ato. Se for consentido e responsável, e
igualmente alegre, divertido.
terça-feira, 24 de julho de 2012
SANGUE DE BARATA
Fraco, absolutamente fraco. Se me pegasse, se
me batesse; se se levantasse dessa cadeira imediatamente e me
perguntasse onde eu estava e com quem; se dissesse que tem vergonha
de mim e mais do que vergonha, nojo; se, enfim, mostrasse que tem
sangue de verdade, como os outros homens, e não sangue de barata; se
não abaixasse a cabeça, se não assumisse uma atitude que já sei
exatamente qual é desde que começo a subir as escadas, desde que,
aliás, abro a porta de casa, e na verdade desde muito antes: desde
que saio de casa e digo que vou demorar.... Mas não. Não vai fazer
nada disso. Vai fazer a mesma coisa de sempre: vai sorrir (não sei
por que também sorrio; sorrio por pena, acho; sorrio por convenção,
para tornar menos aguda a tristeza do nosso convívio). Trocaremos
palavras amenas e então irei para o meu quarto. Ele ficará à
janela, como sempre. E mais tarde, à noite, na cama, vai me desejar
boa-noite, um boa-noite triste, como se me culpasse (ou pior, como se
se desculpasse). E no dia seguinte, de manhã, vai me dar bom-dia,
como todos os dias. Bom-dia! Como se nada tivesse acontecido ou como
se quisesse acreditar que nada aconteceu.
segunda-feira, 23 de julho de 2012
PASSARINHO VERDE
Não era a primeira vez nem seria a última.
Quer dizer, seria. Ele estava no quarto de cima. Ela subiu as escadas
devagar (ele estava digitando no computador quando ela abriu a porta;
ele parou e ficou ouvindo) e quando chegou lá em cima (ele teve uma
súbita vergonha de estar usando uma camisa branca velha, encardida,
e a bermuda folgada, desbotada, de que ela tanto reclamava) sorriu
daquele jeito de sempre: o sorriso de quem não quer sorrir, de quem
sorri apenas por obrigação, e fala, e beija, ai, e vive sob o mesmo
teto. Não é a primeira vez, pensou. Mas seria a última. Trocaram as palavras de sempre, que sabiam a ranço, cansaço
e tristeza. Ela se afastou, foi para o quarto. Ele foi até a janela.
Naquela mesma noite, enquanto ela dormisse, arrumaria a mala.
Imaginou a sala escura, de madrugada. E teve certeza de que no dia seguinte, quando ela chegasse ao trabalho, as
colegas diriam: "Você está diferente, parece que viu um passarinho verde".
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